terça-feira, 23 de agosto de 2011

Teologia (Escatologia)




O mundo assim como Deus quer
  

Revista "MUNDO e MISSÃO"


Renold J. Blank



ual a relação que Deus tem com este mundo? Toda prática religiosa e todo 
culto e, no fundo, até toda doutrina teológica se mede na resposta a essa indagação. Onde, neste mundo, devemos situar Deus? Conforme a resposta que se dá a esta questão, a religião se torna convincente ou ridícula, alienante ou conscientizadora, caminho de fuga ou força transformadora.

Há pessoas que o situam no topo de uma pirâmide hierárquica de poderes e, conseqüentemente, compreendem religião em termos de sistema também hierarquizado, cujo primeiro objetivo é a veneração desse Senhor supremo. Há outras que colocam Deus para fora do mundo, aceitando-o no máximo como espectador passivo de um processo que não mais depende dele. Para essas, religião se aproxima de cultura popular e de manifestações culturais, para embelezar as nossas festas.

Há outras que, pelo contrário, o querem ver como administrador ativo e todo poderoso, que a toda hora interfere e age com poder. Para elas, religião se torna um sistema rígido e ameaçador, através do qual este Deus faz conhecer a sua vontade e controla a nossa obediência às suas leis. E, finalmente, há pessoas que simplesmente hesitam e confessam que não sabem. Estas pessoas, em geral, conhecem as atitudes acima mencionadas e não as compartilham mais.

A sua crença num Deus mágico, que interfere no mundo, se perdeu frente às descobertas científicas, através das quais se explica este mundo cada vez melhor. A sua confiança num Deus todo poderoso, que com bondade dirige o planeta, quebrou diante das desgraças, das dores e das crueldades deste mundo. E a imagem de um Deus legislador e ameaçador, elas a desmascararam como resultado de uma ideologia religiosa interessada no seu próprio poder.

Época pós-cristão

Qual é o papel de sua religião, hoje e nas décadas futuras, onde cada vez mais entraremos numa sociedade marcada por tecnologia, por competição e por lutas pela sobrevivência num mundo?

Voltei agora de uma viagem à Europa, e ainda fico chocado com a acentuada indiferença religiosa das grandes massas. Fico chocado pela experiência de igrejas vazias e de pessoas, cujo único objetivo é a competição profissional e a ascensão social. Tinha a impressão de que, para a maioria das pessoas, a concepção do mundo se resume na busca de bem-estar e a eliminação de seu concorrente profissional ou comercial.

A questão religiosa cristã não se põe mais, e muitos me falaram claramente do cristianismo como algo superado e ultrapassado. "Entramos numa época pós-cristã", diziam. Se essa atitude se restringisse à Europa, poderíamos, apesar de tudo, ficar sossegados. Poderíamos explicar o fenômeno como algo estranho a nós, algo típico do mundo secularizado e racionalizado. Só que a situação não é tão simples assim. Aquilo que nos países da Europa se mostra de maneira evidente no dia-a-dia, também em nossa realidade latino-americana e brasileira começa a se manifestar.


De maneira menos percebida, porque o número dos fiéis é tão grande que os nossos templos permanecem cheios. Mas também em nosso ambiente urbano, constatamos uma emigração silenciosa da Igreja. Também em nosso país, há cada vez mais pessoas que, no fundo, não acreditam mais na maneira como a religião tradicional lhes foi apresentada. Há muitas outras pessoas que vivem a religião como folclore ou reminiscência do passado, como manifestação de culto de um Deus, compreendido como rei e imperador, e isso num mundo que superou tais modelos hierárquicos.

Como resultado, constatamos que também para muitos dos nossos freqüentadores de missas, a verdadeira essência daquilo que é a religião cristã se perdeu. À medida que a consciência das massas se tornar mais crítica, também para muitas delas a religião cristã perderá cada vez mais sua força e sua atratividade. Estaríamos no mesmo caminho que, na Europa, já esvaziou as igrejas. Mas, é exatamente isso que não queremos. Para que não aconteça também ao nosso povo, em vinte anos, aquilo que na Europa já aconteceu, devemos, hoje e agora, começar a agir.

Devemos detectar os problemas e mudar as situações erradas. Onde, porém, estão os problemas? Quais são as causas desse esvaziamento silencioso? Penso que uma das grandes causas é o fato de que, numa história de séculos, a própria religião cristã se afastou muito daquilo que o seu fundador, Jesus Cristo, originalmente quis. Ela se tornou um sistema dogmático e perdeu de vista o seu centro: o ser humano sofrido e esmagado, pelo qual Deus se interessa. Muitos que, em alta voz, se declaram cristãos e cristãs, no fundo, nem sabem mais da intenção primária de Jesus.

À medida, porém, que esquecemos essa intenção, perdemos de vista aquilo que faz da religião cristã uma religião específica, diferente. Ela, então, se torna sistema religioso como tantos outros, com leis e regras, punições e sanções e, conseqüentemente, não há razão para ficar nela. Até fica compreensível que as pessoas busquem respostas que acham mais alegres, mais bonitas, mais felizes. Para evitar uma tal atitude, devemos voltar às nossas origens. Devemos redescobrir aquilo que faz de nossa religião algo especial, da qual vale a pena participar de maneira ativa.

Fazendo isso, não encontraremos celebrações pomposas, um sistema rígido, punições severas contra quem não segue a lei. Em vez de tudo isso, encontramos a convicção de um homem simples e humilde de que Deus não é assim como o sistema religioso estabelecido na sua época o tinha proclamado. Encontramos a certeza absoluta de um carpinteiro, Jesus de Nazaré, no qual reconhecemos o Filho de Deus, que esse Deus não é um Deus que exclui os fracos e pecadores, mas um Deus que tem compaixão deles. Encontramos a mensagem de um Deus solidário com as pessoas que sofrem, que choram, que estão doentes, excluídas, rejeitadas e esmagadas pelos sistemas sociais e religiosos, políticos e econômicos, em vigor.

O Deus de Jesus

No homem de Nazaré, encontramos a absoluta convicção de que Deus corre atrás daqueles que foram excluídos pelo sistema, marginalizados e perdidos aos olhos dos incluídos. Os perdidos e desprezados, Deus não os despreza. Deus os recupera. Deus corre atrás deles, para que possam perder o seu medo, a sua agressividade e o seu ódio, e recuperar a confiança.

Jesus, num mundo de controles permanentes, apresentou um Deus diferente. Um Deus que compreende e que não rejeita aquele que caiu, mas o recupera. Jesus acabou com o medo das pessoas frente a Deus.

Em vez de um legislador, ele apresentou um amigo e, em vez de um Senhor, mostrou um irmão, junto ao qual, o nosso coração ansioso e perdido, pode achar amparo. Eis a grande mensagem de Jesus. E, por causa dessa mensagem, os marginalizados de todos os sistemas começaram a recuperar a sua esperança. Por causa da convicção de Jesus, de que Deus é assim como ele nos apresenta no sermão da montanha, eles e elas, que não tinham mais espaço num mundo administrado e determinado pelos poderes políticos, econômicos e religiosos, começaram a levantar a cabeça.

Se Deus é assim como Jesus diz, então, de novo, é possível viver neste mundo de desgraças. Se Deus é assim como Jesus diz, é possível não só viver neste mundo, mas é possível, também, começar a transformar este mundo. E, à medida que agimos assim, aquele Deus de que Jesus fala se torna evidente neste mundo, se torna visível, se torna tocável, porque pode ser experimentado no agir concreto daqueles que nele crêem. Eis o segredo da mensagem de Jesus.

E eis a tragédia de uma religião que, no decorrer de séculos, foi se esquecendo dessa verdade e que em vez de transmiti-la, se retirou num sistema de códigos, leis, de sanções e perseguições, excluindo em nome daquele que, nas palavras de Jesus, foi apresentado como contrário a toda exclusão. É, talvez, a grande oportunidade, para a Igreja e os cristãos da América Latina, de redescobrir e transmitir de novo essa verdade fundamental, em cima da qual começou a nossa religião. Fazendo isso e propagando de novo a verdade de Jesus sobre Deus, esta América Latina tem a grande chance de tornar-se a nova força missionária, num mundo que está cheio de anseios e de necessidades, para redescobrir o Deus de Jesus.

RENOLD J. BLANK, Doutor em Teologia e em Filosofia, é professor titular da Pontifícia Faculdade de Teologia de São Paulo.

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